ESPECIAL LOST 20 ANOS
Recursos narrativos como flashbacks, flashforwards e flash-sideways que foram essenciais para a estrutura cativante e insana da série
Em 22 de setembro de 2024, LOST completa 20 anos desde sua estreia. Considerada por muitos uma série revolucionária na forma de contar histórias na TV, LOST realmente rompeu barreiras na televisão contemporânea, com sua narrativa não linear e um enredo que chama atenção desde a sinopse: um grupo de pessoas sobrevive à queda de um avião em uma ilha misteriosa e cheia de perigos. Criada por Damon Lindelof, J.J. Abrams e Jeffrey Lieber, a série ainda é lembrada em várias listas e por grande parte do público "seriador".
FLASHBACKS
Um dos pontos mais fortes da estrutura da série é o uso de flashbacks, que não só revelam o passado dos personagens e os eventos que os levaram até a ilha, mas também são essenciais para explorar a própria ilha, os outros residentes, e os mistérios e segredos que cercam o local, transformando a ilha em um personagem central da trama.
Conforme a série avançava, LOST incorporou, além dos flashbacks, outras formas de narrativa, como os flashforwards (eventos que ocorrem no futuro) e flash-sideways (uma linha do tempo alternativa). Até hoje, essa dinâmica narrativa é replicada e serve de inspiração para outras séries de drama e suspense, especialmente as que abordam viagens no tempo.
Conhecido como analepse na literatura, o flashback é uma ferramenta narrativa que interrompe a ordem cronológica da ação para apresentar eventos passados. Existem duas formas principais de analepse:
Interna: refere-se a um momento anterior dentro da própria narrativa.
Externa: refere-se a um momento anterior ao início da narrativa.
No audiovisual, há diversas maneiras de mostrar flashbacks, como recordações (o personagem lembra de um momento), estímulos (visuais, auditivos, olfativos, sensoriais, etc.) ou de forma estruturada (auxiliada pela montagem, alternando entre blocos de passado e presente).
LOST utiliza praticamente todas essas formas para contar flashbacks. O episódio piloto (dividido em Parte 1 e Parte 2) já faz uso de um flashback alternado com os eventos que ocorrem imediatamente após o acidente. Na maioria das vezes, porém, os flashbacks servem mais para justificar os comportamentos e ações dos personagens do que para apresentar memórias.
Nas primeiras três temporadas, vários episódios são centrados em personagens diferentes, e os flashbacks revelam mais sobre suas vidas antes de embarcarem no voo Oceanic 815.
Grande parte dos flashbacks da primeira e segunda temporada é focada nos sobreviventes da queda do avião. Há também interações entre personagens dentro dos flashbacks de outros, o que sugere que todos, de alguma forma, estavam destinados a se encontrar e estar na ilha.
A segunda temporada aborda flashbacks já na ilha, com os sobreviventes da cauda do avião. Conhecemos mais personagens e mais sobre os perigos da ilha. Esse grupo passa por cada perrengue....
Na terceira, flashbacks de não-sobreviventes, ou seja, de residentes da ilha, são mostrados, ou de eventos que aconteceram na ilha. Vemos a queda do avião por outra perspectiva e também vemos episódios “especiais” na temporada, como o 3x14 - Exposé, que destaca outras perspectivas dos eventos da primeira temporada. Rodrigo Santoro era Paulo, personagem recorrente.
(Spoiler ou não) A partir da 3ª temporada, a narrativa começa a misturar flashforwards, que mostram os eventos após a ilha. De forma intencional, o público, ao assistir pela primeira vez, pode acreditar que está vendo flashbacks, quando, na verdade, são cenas do futuro.
No total, aproximadamente 80 episódios de LOST incluem flashbacks, sendo alguns interligados com flashforwards. A primeira temporada inteira, com 23 episódios, é repleta de flashbacks.
Contando os flashbacks tradicionais, o personagem com mais flashbacks é Jack Shepherd, com aproximadamente 9 episódios.
O primeiro episódio a mostrar a vida de um personagem fora da ilha é centrado em Kate Austen (1x03 - Tabula Rasa). Kate é o segundo personagem com mais flashbacks, aparecendo em 7 episódios.
Outros personagens com número significativo de flashbacks:
John Locke: 6
James "Sawyer" Ford: 5
Sayid Jarrah: 5
Hurley (Hugo Reyes): 4
Sun-Hwa Kwon e Jin-Soo Kwon (flashbacks interligados): 5
Charlie Pace: 4
Há personagens, como Juliet Burke, Desmond Hume e Ben Linus, que possuem flashbacks de eventos que ocorreram tanto na ilha quanto fora dela.
Mais curiosidades dos flashbacks de LOST
(fonte: lostpedia.fandom)
Os episódios "Pilot, Partes 1 & 2", "White Rabbit", "House of the Rising Sun", "Hearts and Minds", "Exodus", "S.O.S.", "Two for the Road", "?", "Exposé", "One of Us" e "The Other Woman" mostram flashes do dia 22 de Setembro de 2004 antes da Queda do Avião.
O episódio"The Other 48 Days" foi o primeiro a ser rodado inteiramente em flashback - ele segue os sobreviventes da cauda desde a queda até eles encontrarem Sayid e Shannon. Na tela, títulos indicavam "Dia X".
Libby é o único personagem principal que não está mais na ilha e que não teve um flasback próprio, embora tenha um ponto de vista secundário nos flashbacks e tenha aparecido em flashbacks de outras pessoas.
Rose e Bernard foram os primeiros convidados especiais a terem um flashback em ("S.O.S.").
O flashback de Juliet em "Not in Portland" foi o primeiro de um dos Outros.
A revelação do passado de Desmond em "Flashes Before Your Eyes" foi em forma de "Déjà vu", o que ao contrário dos flashbacks anteriores, nesse ele tem a estranha sensação de já ter vivido muitos desses eventos.
O episódio "Ji Yeon" foi o primeiro a ter um flashback e um flashforward.
A partir da quarta temporada, a série passa a usar mais flashforwards…
FLASHFORWARDS
Se os flashbacks são parte central da trama de LOST, esses outros dois recursos narrativos não ficam para trás. Os flashforwards e flash-sideways ditam o ritmo do meio da série e, principalmente, influenciam os eventos finais. Em certo momento da terceira temporada, flashbacks e flashforwards se cruzam, o que não apenas intriga o espectador, mas surpreende com os eventos e revelações que acontecem.
Na literatura, cinema ou em qualquer mídia, o flashforward (ou flash-forward, também chamado de prolepse ou flash-ahead) é a interrupção de uma sequência cronológica em uma narrativa, mostrando eventos do futuro, projetados ou imaginados. Oposto ao flashback, que mostra eventos que ocorreram no passado, os flashforwards, na maioria das vezes, são propositalmente usados para confundir o espectador, mas também para criar suspense na trama.
Ao contar eventos do futuro, que acontecerão após a sequência primária de eventos da trama principal, a maior sacada do flashforward é que você não sabe se é um flashback ou não. Tanto o flashback quanto o flashforward são usados para quebrar a causalidade lógica da narrativa, que, resumidamente, é a relação de causa e consequência dos eventos.
O primeiro flashforward introduzido em LOST acontece no final da terceira temporada, nos episódios duplos "Through the Looking Glass" (3x22 e 3x23). Nos eventos da ilha, os sobreviventes estão lutando contra o tempo e contra as mentiras de Ben para escapar da ilha em um cargueiro, que acreditam estar procurando Desmond. Quando a narrativa é interrompida para mostrar eventos fora da ilha, vemos Jack completamente desarrumado, com a barba grande e bêbado. Durante todo o tempo, pensamos (pelo menos quem assiste pela primeira vez) que se trata de um flashback, até que, nos últimos minutos do episódio, vemos Kate indo ao encontro de Jack.
A frase "We have to go back" é a revelação de que Jack e Kate (pelo menos os primeiros mostrados) conseguiram, de fato, sair da ilha. São eventos futuros.
A partir da quarta temporada, as coisas se invertem. Os eventos na ilha continuam sendo a narrativa principal, mas os flashforwards assumem a cronologia. Nessa temporada, também fica claro que os flashbacks nunca foram os personagens refletindo sobre seus passados, mas sim eventos que justificavam suas decisões e comportamentos.
Conforme a temporada avança, a série vai dando pistas sobre como eles saíram da ilha, e também vai revelando quem conseguiu sair — e não foram todos. Sabemos logo que foram seis, mas inicialmente não sabemos quem, além de Jack, Kate e Hurley. Na ilha, vemos os personagens se dividirem em dois grupos: os que seguiram Jack e os que seguiram Locke, ao escolherem permanecer na ilha.
Os sobreviventes que saíram da ilha foram chamados de "Oceanic Six" dentro do universo da série. O nome se tornou uma referência e foi replicado em outras séries da mesma emissora, como Grey's Anatomy, que também tem eventos de um acidente de avião na 8ª temporada. Em Grey's, os médicos sobreviventes foram chamados de "Seattle Grace Five", e há até uma pequena menção indireta a LOST em algum episódio da 9ª temporada.
Todos os sobreviventes que escaparam da ilha tiveram episódios centrados em flashforwards, e, em todos, uns foram aparecendo para os outros.
O último flashforward de LOST foi no episódio "Something Nice Back Home" (4x10). Nos episódios finais da 4ª temporada (4x11, 4x12, 4x13), os flashforwards foram agrupados, mostrando flashes de todos, e não centrados em apenas um personagem.
A 4ª temporada ocorreu durante a greve dos roteiristas entre 2007 e 2008, o que resultou em um número menor de episódios em comparação às temporadas anteriores. Esse contexto, aliado a tantas inovações narrativas e mudanças de rumo, pode ter contribuído para que essa temporada fosse considerada mediana e mais fraca.
Ao todo, LOST teve 15 episódios com flashforwards:
3ª Temporada: 01 Episódio
4ª Temporada: 08 Episódios
5ª Temporada: 06 Episódios
FLASH-SIDEWAYS
++ AS VIAGENS NO TEMPO, E ELES NÃO ESTAVAM MORTOS O TEMPO TODO
Na sexta temporada, LOST arrisca e usa um artifício narrativo que até hoje é difícil de ser explicado: o flash-sideways. Pelo menos ao fazer esta pesquisa, não há outras obras que tenham usado esse recurso recentemente. Parece ser algo que apenas LOST fez há algum tempo.
Com os eventos ao longo da sexta e última temporada, talvez tenha surgido daí a confusão que os flash-sideways causaram no espectador, levando à teoria sustentada por anos de que “todos estavam mortos”, o que causou uma espécie de “efeito Mandela”. Isso resultou em um final mal recebido, criticado e discutido até os dias de hoje.
Mas, ao olhar de modo aprofundado para o show, a série deixa claro que tudo o que aconteceu na ilha era real. E os flash-sideways, na verdade, foram usados para mostrar o mundo espiritual dos personagens, suas resoluções e pendências deixadas em vida, antes de partirem para o próximo passo: todos juntos na eternidade.
Os flash-sideways são eventos que interrompem a narrativa principal para contar eventos alternativos ou uma realidade paralela à história principal. Usados para trazer perspectivas diferentes dos eventos centrais, os flash-sideways também levantam a questão do “destino” dos personagens ou do enredo. É um recurso complexo e até confuso, e LOST ousou e arriscou ao usar essa técnica para o final da série.
Os flash-sideways referem-se exclusivamente aos eventos da sexta e última temporada. Eles foram introduzidos já nos dois primeiros episódios especiais de estreia da temporada, e, quando assistimos, logo imaginamos que são flashbacks. Mas logo se revela uma espécie de realidade paralela. Apresentam vários pontos de vista, e durante toda a trama se pensa que seria uma realidade paralela, como se fosse o que aconteceria se eles não tivessem sofrido o acidente e caído na ilha.
Apenas no final da temporada, no último episódio, foi revelado que, na verdade, os flash-sideways nunca poderiam acontecer, porque eram eventos do "mundo espiritual", após a morte deles. Eventos que, como espíritos, eles pudessem vivenciar para então se encontrarem novamente, como nos momentos finais da série, onde todos estavam reunidos na igreja. Subentende-se que, quando todos morressem, não importando quando, se encontrariam ali. Dessa forma, os flash-sideways foram, também, uma espécie de flashforwards, que mostraram o plano pós-vida.
Sendo assim, os flash-sideways serviram como recursos narrativos que puderam explorar a fé conquistada pelos personagens após terem passado por tantas dificuldades e sofrimentos tanto na ilha quanto fora dela. Isso mudou principalmente o ponto de vista de Jack, que era um homem da ciência e cético.
Dos 18 episódios da sexta temporada, 11 tiveram flash-sideways.
Os personagens que tiveram flash-sideways foram: Jack, Kate, Hurley, Sun, Jin, Claire, Locke, Sayid, Ben, Sawyer e Desmond.
A quinta temporada e a viagem no tempo de LOST
A 5ª temporada foi onde se concentraram quase todos os recursos narrativos mostrados ao longo da série. Foi também a primeira a mudar o formato tradicional dos episódios, que antes começavam com eventos na ilha e depois vinham os diversos flashbacks. O começo da quinta temporada mostra os 6 que saíram da ilha ao mesmo tempo em que mostra os que ficaram na ilha “saltando” no tempo.
Em LOST, a viagem no tempo acontece quando Ben “move” a ilha no final da 4ª temporada, para que ela não seja encontrada por pessoas que queriam explorá-la. Isso causa uma ruptura na linha cronológica que resulta nos eventos em que todos que ficaram na ilha sofreram saltos temporais, indo e voltando ao passado (nunca indo para o futuro). Em algum momento, esses saltos param, especificamente quando John Locke “move” a ilha novamente. E quando isso acontece, a ilha para em algum lugar no tempo que não é o presente da série (meados de 2006-2007). Dessa forma, o presente, o tempo e o espaço são sentidos para cada um e não especificamente em uma linha cronológica.
É como se a 5ª temporada da série fosse um enorme flashback dentro do presente e também o futuro da ilha, e os efeitos subsequentes que causariam, onde apenas em 2004 esses eventos seriam mostrados.
“O passado nunca pode ser mudado, pois na linha do tempo original eles já haviam feito o que fizeram. Ou seja, o que aconteceu, aconteceu, e tudo o que já foi feito, está sendo feito ou será feito, tanto nos acontecimentos quanto nas viagens temporais, ocorre em uma única linha temporal.” — via Lostpedia.
Eles não estavam mortos o tempo todo
Acredito que, quando alguém (ou algumas pessoas) assistiu ao último episódio da série e imediatamente interpretou que todos estavam mortos, saiu espalhando pela internet afora, e, quando todos na época estavam confusos com relação ao final, essa parecia ser a única e melhor explicação. Isso, na época, gerou uma tremenda discussão e debates em fóruns de fãs tão intensos que, por muitos anos, a série recebeu o status de “final ruim”. E tal tópico foi incansavelmente discutido até mesmo nos dias de hoje. Mas, embora o final de LOST seja realmente aberto, com muitas simbologias e deixando espaço para que essa interpretação seja feita, eles não estavam mortos o tempo todo. Os criadores da série após tanto tempo também enfatizaram isso.
A série, por mais que tenha deixado várias pontas soltas e muitas questões em aberto, ao menos neste caso, deixa bem claro que tudo o que aconteceu com eles na ilha foi real e aconteceu.
Os eventos dos flash-sideways, ao mesmo tempo que provocam dúvidas, também mostram que todos aqueles personagens tinham o mesmo propósito e destino. Todos deveriam ficar juntos, porque todos eram família e encontraram seus amores. A ilha, as dores e o sofrimento foram parte do processo de jornada desses personagens em busca da felicidade e resiliência. E isso é o que faz LOST ser a minha série favorita.
Para quem não assistiu à série, eu recomendo muito. E para quem já assistiu, ela sempre merece uma revisita.